5 anos da pandemia de Covid: especialistas falam sobre impactos do negacionismo em um dos 'maiores desafios da ciência e da saúde pública'
12/03/2025
(Foto: Reprodução) Problemas começaram em 2020, com os primeiros passos para o isolamento que viria logo com os primeiros casos. Registros também foram feitos com relação à vacina. 5 anos da pandemia de Covid no interior de SP
Arte/TV TEM
O tratamento precoce e o "não" ao isolamento social deram o tom entre os chamados negacionistas durante a pandemia da Covid-19. Quando a vacina contra o vírus chegou, as falas emblemáticas contra a imunização continuaram, fato que, conforme especialistas ouvidos pelo g1, ajudou a agravar os quadros de casos e mortes durante a maior crise sanitária mundial do século.
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A pandemia da Covid-19 assolou o mundo e deixou marcas eternas em famílias, profissões, na economia, ciência e saúde. Por isso, o g1 traz uma série de reportagens nesta semana para falar sobre um dos períodos mais difíceis enfrentados pela humanidade.
Para muitos municípios brasileiros, incluindo os do interior de São Paulo, 2021 foi o ápice dos casos de infectados e de mortes pela Covid. No entanto, os problemas começaram um ano antes, em 2020, com os primeiros passos para o isolamento que viria logo com os primeiros casos. O negacionismo também soou alto, em especial quando foram disponibilizadas as primeiras doses da vacina.
Cloroquina e Hidroxicloroquina não têm eficácia comprovada contra a Covid
Reprodução/TV Globo
Em um hospital de Sorocaba (SP), uma das ações que mais marcaram o negacionismo durante a pandemia ocorreu logo após as primeiras doses serem aplicadas, ainda em 2021, envolvendo um casal que se infectou com a doença.
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O homem usou todos os recursos que tinha na época para pagar o convênio de um hospital particular para a esposa, enquanto ele ficou em um leito público. Por aversão à vacina, ele decidiu não se imunizar e não resistiu à doença.
Um profissional que trabalhava no hospital público e preferiu não se identificar relembrou o que o paciente disse na época: "Durante o seu tratamento, ele dizia que se arrependia em não ter tomado a vacina e não ter deixado a esposa tomar também. E, infelizmente, ele veio a óbito".
O caso é só mais um entre tantos.
Medicamentos ineficazes e fake news
A infectologista Camila Ahren, do Hospital São Marcelino Champagnat, atuou tanto na rede pública quanto na privada e afirma que o negacionismo durante a pandemia de Covid foi "um dos maiores desafios enfrentados pela ciência e pela saúde pública".
Infectologista Camila Ahrens fala sobre impactos do negacionismo na divulgação
Divulgação
"Desde o início, vimos a circulação de informações falsas e a resistência às diretrizes de prevenção baseadas em evidências. Esse comportamento impactou diretamente a evolução da pandemia, resultando na adoção de medidas ineficazes e no atraso na implementação de estratégias realmente protetivas", afirma.
A especialista lembra que cidades que incentivaram tratamentos sem comprovação científica, como o chamado "kit Covid" (composto por medicamentos como hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina), "além de negligenciarem medidas preventivas como o distanciamento social, uso de máscaras e vacinação em massa, tiveram uma pior resposta à pandemia, com índices de letalidade superiores à média nacional".
"Isso mostra que a falta de embasamento científico nas decisões políticas e sanitárias teve um custo muito alto, medido em vidas perdidas. O negacionismo criou um ambiente de desconfiança na população, minando a adesão às estratégias de controle da pandemia. Muitas pessoas, influenciadas por discursos embasados na desinformação disseminada durante esse período, deixaram de seguir as recomendações médicas corretas."
Ainda conforme a especialista, a adoção de medicamentos ineficazes gerou uma falsa sensação de segurança, levando muitas pessoas a se exporem ao vírus sem os devidos cuidados.
"Além disso, a resistência à vacinação atrasou a imunização em massa, permitindo que variantes mais agressivas do vírus se disseminassem, aumentando o número de casos graves e óbitos. Quando a ciência é ignorada, o impacto na saúde pública é severo."
Lição e educação científica
A especialista lembra também que a pandemia ensinou que a ciência salva vidas e que a desinformação pode ser tão perigosa quanto o próprio vírus.
"Uma das lições mais importantes é a necessidade de fortalecer a comunicação entre profissionais de saúde, instituições científicas e a população, combatendo notícias falsas com informação de qualidade. Além disso, ficou evidente que o planejamento estratégico baseado em evidências é essencial para a contenção de crises sanitárias. Países e cidades que seguiram protocolos científicos rigorosos tiveram um impacto menor da pandemia. No Brasil, vimos como a falta de uma resposta unificada e coerente agravou a crise."
Camila Ahrens também lembra que o negacionismo dentro da pandemia alerta para a importância da educação científica.
"Precisamos investir mais em educação para que as pessoas compreendam a relevância da vacinação, das medidas de prevenção e do tratamento baseado em evidências. Esse conhecimento não é importante apenas para esta pandemia, mas para futuras emergências sanitárias."
Taxas de letalidade
Um dos principais índices que medem a gravidade da pandemia está na taxa de mortalidade e letalidade. Sorocaba tem índice de 2,8%. A cidade, ao longo da pandemia, teve 3.313 óbitos, conforme o painel Coronavírus da Fundação Seade. É maior que o índice do estado, de 2,7%, e 60% maior que o índice do Brasil. A cidade ocupa a 23ª colocação com o maior número de mortes do país.
Mirandópolis, outra cidade que apresentou ações negacionistas ao longo da pandemia, apresenta taxa de letalidade ainda mais alta. Com 121 mortes, a cidade tem índice de letalidade de 5,2%. É mais que o dobro do índice do Brasil, e quatro vezes maior que o índice mundial.
Já Porto Feliz, que também teve ações ostensivas com relação ao chamado tratamento precoce, registrou 205 mortes, com taxa de letalidade de 1,4%. Nesse caso, a taxa é menor que as taxas do estado e do Brasil.
As cidades de Bauru, Paraguaçu Paulista, Jundiaí, Salto e Itu estão na lista dos municípios que apresentaram baixo índice de isolamento social no início da pandemia. Em alguns casos, como em Bauru, houve a necessidade de intervenção do Judiciário contra medidas que afetavam o isolamento.
Mas a cidade de Araraquara, por exemplo, que adotou medidas mais restritivas com relação a vários temas dentro da pandemia, incluindo o isolamento social, tem taxa de letalidade equivalente à de metade do Brasil e equiparada ao percentual do mundo, que é de 0,9%.
Mesmo com esses números e atos considerados negacionistas, os dados sobre letalidade no estado de São Paulo são liderados por outras cidades. Inclusive, a maior taxa é da cidade de Sarutaiá, na região de Itapetininga, que registrou 153 casos com 23 mortes, e índice de letalidade de 14,74%, bem acima dos apresentados por Sorocaba, Mirandópolis e Porto Feliz.
Sorocaba (SP) registrou mais de 3 mil mortes ao longo da pandemia
Pâmela Ramos/g1
Já a cidade com o melhor resultado é Queiroz, na região de Bauru. O município registrou 1.062 casos e três mortes.
Há ainda outro cenário com relação às mortes. É quando a comparação é feita por grupo de habitantes. No Brasil, são 33 mortes por cada 10 mil habitantes. No estado de São Paulo, são 41 mortes para o mesmo grupo. Levando em consideração os mesmos 10 mil habitantes, Sorocaba tem 45 mortes, Mirandópolis 43 e Porto Feliz 36.
Negligências, conquistas e lições
Camila Bicalho, médica infectologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC-SP, afirma que é preciso lembrar que o negacionismo existe há muito tempo, mas que se popularizou na década de 1980 e essa situação ficou ainda mais forte durante a pandemia.
Camila Bicalho, médica infectologista e professora da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC-SP
Divulgação
"Tem uma revisão sistemática publicada na Nature, ainda em 2021, e vários outros trabalhos posteriormente publicados, que [mostram que] a hidroxicloroquina e a cloroquina não só são ineficazes para o uso da Covid, como para a profilaxia da Covid, e que elas também aumentaram o risco de morte entre as pessoas que fizeram a utilização dessas medicações. Em contrapartida, aquelas pessoas que tomaram a vacina morreram menos."
"Isso mostra que, realmente, essa postura de negligenciar, acreditar em tratamentos curadores e tratamentos milagrosos realmente contribuiu para que muitas pessoas morressem em decorrência da Covid-19", afirma.
Ela também comentou sobre a principal lição deixada pela pandemia:
"Acho que a principal lição que a gente recebe é o fato de que a gente só saiu de quase 3 mil mortes por dia no Brasil, para que nos dias de hoje a gente possa voltar a trabalhar presencialmente, se encontrar com as pessoas e ir para o carnaval graças à ciência. Então, a gente tem que pensar que foram centenas, milhares talvez de laboratórios ao redor do mundo trabalhando para desenvolver uma vacina que fosse, não só uma vacina, mas desenvolver vacina e medicamentos que fossem capazes de combater a Covid-19."
A médica também comentou sobre a atuação dos profissionais da saúde, no momento em que tratamentos alternativos eram apresentados.
"A gente tinha, por um lado, autoridades que negligenciavam a Covid, diziam que tinham kits e drogas curadoras, e, por outro lado, a gente tinha os profissionais da saúde, geralmente sobrecarregados, com medo de adoecer e muitas vezes recorrendo até a tratamento psiquiátrico para tratar ansiedade e depressão."
Ações negacionistas
Prefeitura de Sorocaba divulgou 'estudo' que apontou '99% de eficácia' do kit Covid, mas postagem foi apagada horas depois da repercussão
Reprodução/Instagram
Em Sorocaba, a prefeitura chegou a divulgar um "estudo" preliminar que apontava 99% de eficácia do tratamento precoce contra a Covid-19, que não tem comprovação científica e que a Associação Médica Brasileira disse que deveria ser banido. Após muitas críticas, a postagem foi apagada das redes sociais e o texto foi alterado.
De acordo com o texto original publicado, o "estudo" foi feito pela Secretaria de Saúde do município e monitorou 123 pacientes com sintomas da doença após dez dias do início do tratamento com os medicamentos azitromicina e/ou ivermectina. À época, a prefeitura afirmou que, desse total, 122 pessoas foram curadas em casa e um morreu porque procurou a unidade de saúde quando "já estava com um quadro de saúde moderado".
A distribuição de kits também era incentivada pelo então prefeito de Mirandópolis, Everton Sodário (PSL). Em uma de suas muitas postagens sobre o tema, o prefeito afirma que determinou a criação de kits para a distribuição à população. Na lista, estavam cloroquina e azitromicina, comprovadamente ineficazes contra o coronavírus.
"Determinei ao Departamento de Saúde de Mirandópolis a criação de kits com cloroquina e azitromicina. Os pacientes que apresentarem sintomas do vírus chinês, caso queiram, sairão com o kit do posto, de acordo com protocolo do Ministério da Saúde", disse, na época.
Em Porto Feliz, o kit precoce era quase regra nas unidades de saúde. Esse kit de remédios que incluía a hidroxicloroquina começou a ser distribuído no começo de abril de 2020, logo no início da pandemia. Ele era direcionado a pacientes com sintomas leves de coronavírus em dois postos de saúde e no pronto-socorro do município.
Especulações e ponderações
Rosana Maria Paiva dos Anjos, infectologista e especialista em saúde publica e professora da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde PUCSP, fala sobre as medidas, incluindo a distribuição do chamado "kit precoce".
Rosana Paiva, de Sorocaba (SP), médica especialista em saúde
Arquivo pessoal
"Passados cinco anos com pandemia, casos graves ainda ocorrem dentro de situação endêmica da doença, com a identificação de surtos locais. O papel de cada medida de controle tem sido tema de artigos científicos e opiniões de especialistas e estudiosos gerando controvérsia, o que não é incomum no campo da medicina", diz.
"Hoje, na era da medicina, baseada em evidências, artigos e análises com muitos vieses [erros induzidos no modelo do estudo] são debatidos pela sociedade, o que é bem-visto, pois os erros e acertos fazem as pessoas buscarem esclarecimentos e a verdade das ocorrências."
A especialista também faz algumas ponderações. A primeira sobre os kits distribuídos nas cidades: "A correlação feita em estudo de grupos de indivíduos, aqui no chamado Modelo Ecológico, tem forte viés, pois a pessoa que morreu pode não ter tido acesso ao medicamento, uma vez que não sabemos exatamente o período de disponibilidade, quem, quantas pessoas receberam o kit e nem sobre as orientações de uso que cada um recebeu. Para confirmar qualquer uma das hipóteses possíveis, necessitaríamos de uma série de informações mais precisas."
A segunda questão é sobre a vacina: "Na população geral, temos uma porcentagem de pessoas que recebeu a vacina, mas não sabemos se quem morreu por Covid-19 estava ou não vacinado e, se sim, com quantas doses. Para comprovar, seria necessário termos estudos nos modelos de ensaios clínicos randomizados e controlados ou pelo menos de estudos prospectivos 'delineamento de coorte', que seriam a base para Revisões Sistemáticas e Metanálises. No ano de 2021 e até acompanhamos alguns estudos nestes modelos estruturados mais robustos foram desmontados e os motivos não explicados."
Prefeituras
As prefeituras de Sorocaba, Mirandópolis e Porto Feliz, que adotaram medidas com relação ao kit Covid, foram procuradas pela reportagem para falar sobre a pandemia.
A Prefeitura de Sorocaba disse que, ao longo da pandemia, a cidade "respeitou todos os protocolos necessários de segurança e também contribuiu para a mitigação de impactos sociais à população com repasses à camada que mais necessitava".
"Desde o início do advento, o município sempre monitorou e buscou a disponibilização da vacina como o método de prevenção mais seguro, eficaz e gratuito, prevenindo assim as formas graves da doença e evitando os óbitos. A pandemia do coronavírus foi um evento inédito, de magnitude mundial, que desafiou todos os países e, com isso, Sorocaba sempre buscou alternativas para que a população pudesse sofrer menos consequências possíveis durante o período."
As prefeituras de Mirandópolis e Porto Feliz não retornaram os questionamentos.
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